• 20 de junho de 2014

    Alguém na multidão

    wally

    – Mas você não acha isso muito egoísmo?

    • O que você acha?

    • Ai… não sei…

    • O que realmente está sendo difícil para você assumir?

    • … Se eu fizesse isso eu estaria muito mais feliz com toda certeza…

    • O que tem de errado em assumir isso?

    • Talvez ele não fique tão feliz assim.

    • Pode ser… mas na atual situação nem ele e nem você estão felizes.

    • Pois é… me dá medo.

    • Sim, mas ao mesmo tempo é sincero não é?

    • É…

     

    Talvez uma das coisas mais difíceis para o ser humano atualmente seja constatar um fato um tanto inusitado: que ele se ama, apesar dos pesares.

    Uma das tarefas que a terapia busca cumprir é ajudar a pessoa a se reencontrar com este fato. Ele é difícil pelas inúmeras instruções que recebemos e que adotamos para sentir que temos imperfeições, que precisávamos fazer mais, que não demos tudo de nós… enfim… que não podemos – como poderíamos? – simplesmente nos amar tal como somos, tal como estamos. É interessante, mas a menção disso para muitas pessoas provoca revolta.

    No entanto, por mais revoltante que possa parecer à alguns a minha experiência me mostra um fato: quem se inicia na estrada do amor próprio tem sempre como primeiro movimento aceitar-se e relaxar naquilo que já é. Este primeiro passo leva ao segundo que é, muitas vezes, uma grande provação: aceitar o próprio desejo. É comum temer o desejo e buscar se afastar dele, achá-lo egoísta, inadequado, ou um ato de rebeldia tola que nos levará à solidão.

    Aprender a se aceitar envolve aprender a aceitar os nossos desejos e a termos a iniciativa de darmos à eles a nossa personalidade, ou seja, de escolhermos o que vamos fazer com aquilo que existe dentro de nós. Quando isso começa a ocorrer o medo do desejo começa a ser algo diferente: uma afirmação da vida que nos coloca numa situação que nos traz medo por empurrar-nos para longe de nossa zona de conforto. Para que possamos ir além e, ao fazê-lo, nos tornarmos nós mesmos, expressando nós mesmos. Não é o desejo que tememos, mas sim aquele vácuo entre agora e “daqui a pouco” quando me tornarei algo diferente.

    No entanto, aquele que se aceita não é uma vítima de seus impulsos como pensa-se por aí. Pelo contrário, ele assume seus impulsos, aceita, usa-os como matéria prima de si próprio. Sua ação possui intenção clara e uma conexão com seu desenvolvimento tão bela que pode até assumir o caráter de intuição. Tornar-se alguém, como a própria expressão sugere é uma ação no gerúndio, ela não visa um “fim”, mas sempre um “sendo”, “criando”, “acontecendo” que quando toma à si próprio nas mãos se perde e quando se perde de si começa a ser.

    É este perigo do meio do caminho o que se teme. Ao mesmo tempo, o heroico mergulho neste universo é o que nos alimenta a alma e nos torna “alguém” para nós mesmos. Afirmar o medo que a vida traz consigo, o horror, a dúvida é assumir que para viver é preciso ter o coração forte. Amar a vida por estar acostumado a viver é diferente de amar a vida por estar acostumado a amar. E o amor é para quem é forte pois nele todas essas provações encontram-se a todo instante. O amor é gerúndio por definição, é sempre uma conversa na qual os atos servem como palavras.

    O amor por si é o primeiro e talvez o mais difícil de ser vivido por esta razão. Amar-se significa buscar sua expressão, evoluir e ir além de si. Porém quando deixo de ser quem sou para “tornar-me” estou sempre abandonando uma parte de mim para ir em direção à uma nova parte ainda não criada. Este jogo eterno é o que se teme pois amar-se, paradoxalmente, é amar o processo que nos deixa sempre em dúvida sobre o que amamos: aquilo que somos agora ou aquilo que seremos. Porém este paradoxo resolve-se quando se entende que não amamos um ou outro, mas sim este processo, pois é nele que se encontra o “ser”.

    Abraço

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