• 5 de junho de 2020

    Amor próprio

    – Mas eu não sei se posso me amar.

    – Neste momento não pode.

    – Porque?

    – Bem, você me parece ter que atingir um ponto antes de se amar, certo?

    – Sim…

    – Então não pode amar quem é, apenas a promessa de quem será.

    – Mas não é a mesma coisa?

    – E quando chegar lá? Será que não vai haver mais nada para alcançar?

    – É… pode ser…

     

    O amor próprio não é romântico. A propaganda quer nos dizer que somos lindos e perfeitos, que, ao seguir nosso “verdadeiro eu” tudo será melhor e maravilhoso. Isso é parte da verdade. O fato é que se você ousar amar-se, não espere que isso será diferente de qualquer outra relação com outra pessoa.

    A integridade não é vacina contra a dor, angústia, tristeza ou escolhas erradas. Este é um dos grandes erros que a indústria da auto ajuda faz as pessoas acreditarem. O amor próprio é muito menos luminoso do que as postagens de facebook e instagram querem nos fazer crer. Ele não trata de um ideal luminoso, mas, sim, de uma realidade. O ponto é que tendemos a criar um ideal e crer que se “formos nós mesmos” seremos este ideal. O fato é o contrário: ser quem somos nos afasta de nosso ideal e nos posiciona em nosso “real”.

    Quando chego neste ponto, muitas pessoas olham com desdém e me dizem: mas se for para me amar assim como sou que graça que tem? Mas este é o ponto, não? Para que o amor seja “próprio”, é necessário que o ser amado seja aquele que é e não aquele que virá a ser um dia – ou seja, uma mera promessa. O ponto que não se consegue compreender é o de gerar amor por algo com defeitos ou incompleto. Pois esta é a verdade sobre o ser humano: ele é, por definição incompleto e defeituoso. Apolíneo e dionisíaco ao mesmo tempo. Civilizado e selvagem. Virtuoso e pecaminoso.

    Dúbia é a natureza do ser humano. Aprender a olhar nossas capacidades e limites, virtudes e vícios e amar o ser que somos com esta completude é uma tarefa para poucos. O desejo é ser apenas luz (gratiluz) e não sombras. Ora, se o intuito é o amor próprio, ele não acontece à céu limpo e aberto com sol, mas sim nas sombras escuras. Ser íntegro, é ser completo. Jung diz: “prefiro ser pleno à ser bom”. A sabedoria da frase consiste em perceber que ser “bom” é um julgamento moral e que por isso é sempre incompleto. A plenitude envolve nossa luz e nossas sombras.

    Por este motivo afirmei que o amor próprio não possui uma natureza romântica. Ele não é ideal, é real. Ele é “sal da terra”, mas não no sentido romântico que vê na terra algo “bom e puro”, mas no sentido trágico que vê nisso tudo o que isso possui. E apenas ao tomar para nós o que é da forma que é, ou seja, em sua plenitude é que podemos falar em amor próprio. O restante é uma busca de amar uma imagem que criamos – e tentamos manter viva – afim de agradar nossos traumas e faltas de infância.

    O amor idealizado sempre possui algo traumático nele, por este motivo acaba sendo uma tragédia. Nunca nos permitiremos conquistar o ideal, pois nesta conquista apenas nos abriríamos para nossas maiores dores. Se apenas serei amado ao ser quem não sou, concluo que aquile que sou não é, de fato, digno de amor. Assim sendo, conquistar o amor é sempre a perda do objeto que é amado – no caso, você mesmo. O amor real e trágico ama aquilo que é com seus defeitos e limites, porém, algo real e que ao ser amado sabe dos limites desse amor e os aceita, pois o amor é assim: limitado (e, com isso, real).

     

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