– Mas e porque ele não pode fazer isso?
– “Poder”, ele pode. Ele simplesmente não quer.
– E porque não quer? Não consegue ver que eu quero muito isso?
– Talvez sim. Mas me diga: porque ele tem que querer, visto que já deixou claro que não quer?
– Para me fazer feliz! Isso não é importante para ele?
– Talvez seja, mas o ponto é que ele não está disposto a fazer o que você quer. E isso talvez não seja por “falta de amor” e, sim, porque ele não entende isso como um dever, tal como você vê.
– É… para mim é assim mesmo.
Uma diferenciação muito importante para nossa saúde mental é entre desejo e dever. Quando colocamos algo que queremos como um dever, embora isso possa ter um elevado teor motivacional, podemos nos cobrar (ou cobrar os outros) excessivamente, criando expectativas que podem ser irrealistas.
O dever é da ordem de coisas que precisamos fazer. Tratam-se de obrigações que temos que cumprir para alcançar determinado fim ou simplesmente para sobreviver. É comum que as obrigações não estejam ligadas apenas às necessidades básicas, mas que assumam este valor. O pagamento de imposto, por exemplo, é um dever, uma obrigação que, embora não afete diretamente a sobrevivência, possui um valor alto, pois o ato de não pagá-lo reflete em crime.
Quando colocamos o desejo, como um fator de dever, confundimos o seu valor. O desejo é algo importante à vida, ele tem a ver com a ampliação da vida. Em geral, quando falamos em desejo, é algo que não é ligado à sobrevivência, mas sim, com o exercício de uma vida plena. É algo que dá sabor à vida, que leva a vida adiante e não apenas a sobrevivência. Assim sendo, se aquilo que é desejado, assume o valor de dever, podemos tornar algo muito agradável em algo muito duro e chato.
Quando isso se refere à relacionamentos o que ocorre é que colocamos uma expectativa nossa como um dever para o outro. Assim sendo aquilo que é desejado (“quero uma pessoa cuidadosa comigo”, “quero alguém que me acompanhe nos treinos físicos”), é assumido como um dever do outro (“você tem que ser cuidadoso comigo”, “você tem que me acompanhar nos treinos físicos”). Esta pequena mudança configura uma relação de comando e não de parceria.
Ao mesmo tempo, quando compreendemos um dever como um desejo, damos menos importância à algo que é fundamental para a vida. Pessoas com restrições alimentares, por exemplo, devem ingerir determinados alimentos e/ou não ingerir outros. Se percebo isso apenas como uma questão de desejo, posso acabar rompendo uma dieta que é fundamental à minha sobrevivência. Indo para as relações, existem características que são fundamentais, como o respeito ou a admiração. Se alguém trata o respeito apenas como um desejo, pode se manter em relações abusivas durante muito tempo.
Compreender esta diferença significa entender a origem daquilo que queremos fazer: “ser cuidadoso com você” é algo que nasce de seu desejo ou é algo que você tem que ter? Se a pessoa é muito frágil ou tem alguma doença, por exemplo, precisa ter alguém que é cuidadoso “por natureza”. E em segundo lugar é compreender o grau de importância que isso tem para você. Aquilo que posso, perfeitamente perder ou trocar por outra coisa sem perdas é algo voltado ao desejo. Já quando vemos algo que não pode ser substituído falamos em dever.