– Eu não quero mais falar com ela.
– Eu sei.
– Ela não merece.
– É o contrário.
– Contrário? Como contrário? Olhe o que ela fez para mim!
– Sim, ela foi “sacana”.
– Então!
– Mas quem não merece falar com ela é você, porque querer, você quer.
(silêncio)
– E porque eu não mereço?
– Porque não consegue reconhecer que quer falar com ela.
– Odeio isso.
– Sim.
O filme “Her” tem uma frase linda: “o passado é só uma história que contamos à nós mesmos”. Porém, refletir sobre ela é um tanto chocante e exige maturidade. Dizer que o passado é “só uma história” não deve ter como foco a palavra “só”, mas sim “uma história”. Ao tomar a discussão por este lado, entramos no tema da realidade.
Uma das tarefas que cabe à todo psicólogo clínico em praticamente todos os seus atendimentos é a “redefinição”. Nela, tratamos de dar um novo sentido sobre um evento ou nova definição sobre um conceito que a pessoa traz consigo. O que faz esta tarefa tão importante e comum é o fato de que muitos conceitos e significados que traçamos em algum momento de nossas vidas, se tornam disfuncionais mais tarde. Porém, como sabemos que eles se tornam disfuncionais?
Tomando um adolescente classe média, média alta que não precisa trabalhar, por exemplo. Talvez essa pessoa deseje, aos seus 16 anos, ter um lugar só para si, uma casa para receber os amigos e festar, dormir a hora que quer e fazer “o que bem entende”. Ao atingir isso, mais tarde, no começo ela se deleita com a execução de todos os seus desejos. Algum tempo depois, ao iniciar vida profissional e, talvez, marital percebe que há algo de errado. As crenças elaboradas na adolescência sobre o que é “ser um adulto”, não estão em harmonia com a realidade. Antes seus pais o acordavam, agora seu emprego pede que ele acorde cedo, por exemplo. “Onde está a minha liberdade?”, pergunta-se a pessoa.
O problema não é a “falta de liberdade” e sim a concepção que o adolescente criou sobre como deveria ser uma vida com “liberdade”. A realidade é: ele escolheu o emprego, a namorada e a casa. Escolheu crescer e tudo isso vem com limites. Porém a “história” que ele ainda tem em mente é que “estava indo tudo bem, minha vida estava tranquila e daqui a pouco eu tenho que fazer isso e fazer aquilo e não tenho mais a minha liberdade”. As histórias que contamos para nós são a interpretação que tiramos de nossas experiências, porém elas são histórias e não a realidade em si. Quando lidamos com a realidade em si, as coisas são diferentes.
As histórias são “boas” a realidade é cruel. Nas histórias sempre temos uma desculpa externa para nosso sofrimento, na realidade não. Então as redefinições se tornam necessárias. Sabemos que uma crença é disfuncional olhando para a realidade. Quando nossos conceitos criam histórias que nos ajudam, crescemos e eles são funcionais. Quando atrapalham nosso crescimento, se tornam disfuncionais. Uma pessoa mais amadurecida, por exemplo, diria que escolhas trazem consequências. Ela, então, pensa nas consequências, ganhos e perdas que terá com as escolhas que fará e decide se está disposta a enfrentar isso ou não. Assim sendo, ela entende o que acontece depois como “parte do jogo” e não como “perda da liberdade” como alguém mais imaturo pensa.
A realidade é dolorosa em relação as histórias porque ela sempre nos apresenta perdas. Sempre vamos perder algo à medida em que crescemos e o tempo passa. A realidade cobra seu preço de maneira crua e imparcial. Por outro lado, ela traz a liberdade verdadeira: aquela na qual ação e consequência caminham juntas e todos temos limites. Nela, as coisas são pequenas: apenas o que pode acontecer acontece. De outra lado, o fato das coisas acontecerem dessa forma nos faz fortes para realizá-las. As histórias, são ricas, muito pode acontecer nelas, porém, se tornam restritas, porque não somos tão potentes ou tão vítimas quanto nossas histórias gostam de nos colocar.
Abraço