– Pois então, tenho pensado nesta semana sobre algo que me incomodou um pouco e ao mesmo tempo deu um certo alivio.
– No que foi que você pensou?
– Pensei que eu entendi um pouco do meu marasmo… eu leio um monte de coisas, treino um monte de coisas, mas no final eu estou sempre em casa.
– Hum… continue…
– Tipo, eu não saio, não uso, não dou utilidade para o que eu aprendo, daí é claro que com o tempo o aprendizado fica “inútil!.
– Muito bom… o que quer dizer que você tem muitas competências, mas poucos lugares para usá-la, porque será disso?
– Eu acho que é porque eu sempre corria atrás do que me diziam que eu tinha que aprender, do que eu era ruim em fazer, mas poucas vezes atrás do que eu queria de verdade. Daí fico lá super competente, mas sem o desejo para ir atrás de algo.
– Profundo isso não é?
– Pois é… por isso que esta semana estou sentindo um misto de ansiedade com leveza…
– Isso, tensão positiva né? Aquela que faz a gente se preparar para a ação!
O mundo de hoje exige muitas competências e é altamente competitivo. Isso possui vantagens e desvantagens.
Enquanto terapeuta a desvantagem mais óbvia que consigo observar é que, embora exista um discurso que diz que o indivíduo é a coisa mais importante o que acabamos tendo, na verdade, é uma sociedade que visa as funções e não o indivíduo. As funções que mantém o consumo e o mercado ativo se tornam mais importantes do que o indivíduo e seus desejos e a confusão entre desejar e consumir tem ficado cada vez mais estreita e nebulosa.
Obviamente não sou contra a competência, creio que quanto mais competentes somos, melhor para nós, pois poderemos operar no mundo de uma forma mais adequada. Porém a pergunta: me tornar competente para que? Fica sem resposta. “Porque o mercado precisa” é uma resposta altamente fria, na minha opinião, embora saiba que no nosso contexto atual ela é verdadeira, é importante refletir no que esse pensamento pode trazer para a nossa percepção de indivíduo.
Se a resposta “porque o mercado precisa” é a correta então tenho que me importar mais com o que “mercado” (quem é ele, afinal de contas?) deseja e não com o que eu desejo. Treinamos as pessoas para olharem para fora ao invés de olharem para dentro e reclamamos que vivemos numa era em que as pessoas não tem um sentido de vida plenamente desenvolvido. Assim, entendo que hoje temos pessoas muito competentes, mas que não possuem desejos, apenas “vontades de consumo”.
Percebo os adolescentes hoje com esta inquietação de uma forma diferente de quando eu mesmo era adolescente. O discurso de “fazer a diferença” não está enraizado no desejo da pessoa, mas sim num discurso social. Isso é alarmante à meu ver, porque, como poderemos “fazer a diferença” se nem este discurso é nosso? Se a ideia que baseia nossas ações não é nossa, creio que será difícil a pessoa “fazer a diferença”, “trazer algo inovador” para o mundo. Pois é justamente no indivíduo e no seu poder de criação que reside a “diferença” que é ao mesmo tempo benção e maldição: benção quando sabemos olhar, validar e dar lugar de existência, maldição quando, pelo contrário, destruímos a diferença do outro.
Assim, eu me pergunto: o que poderia acontecer se a necessidade de ser super competente fosse diminuída em prol da necessidade de aprender o que se deseja de verdade? O que iria acontecer se as pessoas fossem mais incentivadas à pensarem e realizarem o desejo que trazem consigo do que ficarem criando competências e mais competências para um tal “mercado” de trabalho. Como disse Joseph Campbell, a questão não é se vamos mudar o mundo, mas se vamos conseguir existir no mundo enquanto indivíduos. Se vamos dizer “sim” para o sistema ou “não” para o sistema. E, indo um pouco além, se o sistema vai servir à si próprio ou se ele vai nos servir?
Abraço
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