• 18 de janeiro de 2021

    Quando a raiva nos cala

    – Eu sempre falei besteira… então até entendo.

    – Entende o que?

    – O que faziam comigo.

    – Os mal tratos?

    – É.

    – E se você não entendesse, como seria?

    – Ah, eu teria que…

    – que?

    – Nunca tinha pensado nisso antes… mas me veio…

    – O que?

    – Eu teria que lidar com isso… ficar com raiva deles…

     

    Um fato comum quando sofremos algum tipo de abuso e sentirmos raiva dos agressores. Mas esta raiva, quando não é dirigida de maneira adequada pode se voltar contra nós, fazendo com que nossa auto estima sofra.

    E o que seria “dirigir adequadamente” a raiva? O sentimento de raiva quando sofremos um abuso, surge como uma forma de defesa. O problema é que geralmente, quando estamos em uma situação abusiva, os agressores possuem vantagens sobre nós e uma retaliação pode não ser sempre a melhor forma de lidar com a situação. Embora o sentimento de raiva vise nos libertar da situação e tirar os agressores de nossa frente, para nos proteger, nem sempre essa atitude é viável.

    O que ocorre com muitas pessoas é que elas passam a direcionar a raiva sobre si. Dizem, por exemplo: porque fui mexer com eles? Porque disse aquilo, no que eu estava pensando? O que é que eu tinha que ir naquele lugar? Enfim, resolvem se punir por “terem feito” algo que ocasionou a situação que gerou o abuso. Esta raiva visa defender a pessoa, embora o custo dessa defesa seja muito alto. Pois ao se culpar a pessoa busca evitar o que ela fez afim de evitar novos abusos.

    Porém para isso ela passa a super policiar seus atos e pensamentos, para não ter mais nenhuma “ideia boba”. O fato que começa a ser afastado da consciência é que, por mais que ela tenha feito “algo bobo”, quem cometeu o abuso foi outra pessoa, ela simplesmente poderia ter escolhido fazer algo diferente ou fazer nada em relação à isso. É importante para a vítima de uma situação de abuso lembrar-se sempre de que o agressor teve participação ativa no processo, em outras palavras: o agressor escolhe a violência.

    Mesmo quando não podemos fazer nada contra os agressores ou quando não conseguimos escapar de uma situação abusiva, este pensamento é importante. Compreender que nosso comportamento não está inadequado, mas sim o do abusador é fundamental para manter nossa saúde psíquica. Esta tarefa nem sempre é fácil, pois culpar-se é uma estratégia de menor custo emocional à curto prazo. Além disso em vários casos o abuso oferece “vantagens” a quem “se rende” nesse sentido.

    A raiva, então, pode ser nossa voz, mesmo que velada quando a situação é inóspita demais ou pode nos calar. A raiva visa nossa proteção e é nesse sentido que precisa ser mantida. Não se trata de odiar fortuitamente alguém, mas de manter o foco. Não se trata de ser violento contra alguém, mas de manter o foco. Enquanto sei que algo errado acontece contra eu e que isso não está sendo minha culpa por contar com o ato voluntário de outra pessoa me mantenho com minha voz. E em alguns casos isso pode ser tudo o que teremos.

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