• 29 de junho de 2019

    Porque vítimas sentem culpa?

    – Eu não entendo.

    – O que você não entende?

    – É que… eu sei que isso aconteceu… mas me sinto muito mal em dizer isso.

    – Claro… tome um pouco de tempo e me diga o que sente ao pensar em dizer isso.

    – Me sinto culpado.

    – Como se você estivesse…

    – Como se eu fosse trair minha mãe sabe? Como se ela não merecesse que eu dissesse isso…

     

    Um fato comum, porém difícil de ser compreendido sobre a relação entre vítimas e abusadores é a culpa que a vítima sente pelo abuso que  sofreu. Esta dinâmica, é extensa e abarca um período de tempo maior do que pensamos, além de deixar consequências severas em todos os envolvidos.

    Em primeiro lugar é importante olhar a história do abusador. Em geral, esta percepção nos falta, mas quase toda pessoa que abusa também foi abusada por alguém. Tendemos a pensar o abusador como um monstro sem coração, mas infelizmente, se lhe falta um coração é porque alguém o tirou. Obviamente, isto não retira a responsabilidade por seus atos, mas é algo importante de ser lembrado. O motivo é que a mudança de abusado para abusador se dá quando o abusado deseja para si o poder que aquele que o abusou (supostamente) tinha. Neste momento ele se torna um abusador (grosso modo).

    Quando este faz uma vítima, temos uma relação de três pessoas acontecendo: o abusado, o abusador e o abusador do abusador. Logo, o abuso precisa sempre ser visto de maneira trans geracional. A vítima é indefesa e precisa estabelecer algum tipo de relação com a pessoa que a abusa afim de consegui sobreviver. Falamos que a vítima sofre violência sem sentido, mas isso é quando olhamos do ponto de vista da situação atual. Quando vemos de um ponto de vista de tempo mais amplo, a violência é a forma pela qual o abusador tenta redimir a sua fraqueza quando foi abusado.

    Novamente, isso não justifica o ato, mas nos ajuda a compreender a vítima. O abusador coloca contra ela as frustrações e dores do seu abuso. A vítima é indefesa e precisa explicar para si esta violência. Para ela também é vetada a informação de que seu abusador foi abusado em algum momento. O que lhe sobra é o fato de acreditar que, de alguma maneira, “mereceu” aquilo, ou de compreender que a violência é “normal”. Quando a pessoa se cria com isso, é muito difícil de dizer “não” para isso, por mais doloroso que possa ser.

    Esse é ponto central da ideia, afinal de contas, a vítima sente-se culpada, porque para ela, ou ela merece a violência – e, portanto deve ter feito algo de errado – ou porque ela entende isso como algo natural e não como violento, logo, como irá queixar-se? Ela tentará de alguma maneira defender seu agressor, mesmo que saiba racionalmente que essa pessoa lhe feriu. A virada ocorre na emoção, em sentir-se como alguém livre de culpa. Isso é mais importante do que saber-se abusado, pois o abuso mantém a culpa ao naturalizá-la.

    O fato do abuso ser algo longo no tempo pode contribuir para ajudar as vítimas. Compreender que o abuso não é culpa delas, mas sim uma violência que se perpetua, pode ajudá-las a ver que seu abusador a abusou por algo da história dele e não da dela. Isso também nos chama para um ponto importante e doloroso que é a empatia pela pessoa do agressor (não pelo ato do abuso). Esta é muito polêmica e precisa ser compreendida plenamente. Em vários casos que tratei com este tema, quando a vítima consegue estabelecer a percepção de tempo longo e perceber seu abusador como alguém que já foi abusado, esta sensação empática pode surgir no sentido de tirar do agressor o poder que lhe era dado anteriormente. Ver a “força” que o abusador tinha como mais uma forma de defesa psíquica ajuda muitas pessoas a superarem a sua própria noção de fragilidade emocional diante do que lhes aconteceu. Ver no “forte” a fraqueza, ajuda o “fraco” e ver em si a sua força.

     

     

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