• 1 de setembro de 2014

    Religião, cultura e culpa

    censurA

    • Mas então eu entendi o seguinte: não adianta muito eu ficar querendo mudar isso.

    • Hum, e porque?

    • Me lembrei que está tudo escrito já, que Deus sabe o que irá acontecer, me basta aceitar e continuar.

    • E aí eu me lembro de uma frase de Santo Agostinho: “Reze como se tudo dependesse de Deus. Trabalhe como se tudo dependesse de você”.

    • É… mas ele sabe não sabe?

    • Claro que sabe, mas… como ele sabe: porque ele já decidiu ou porque ele é onipresente e onisciente?

    • Como assim?

    • Bem, você já viu uma criança que está prestes a fazer besteira? Ou um adolescente que está fazendo besteira num relacionamento e que você “sabe” que vai dar em besteira?

    • Sim.

    • Então, como você sabe: porque está escrito ou porque você está percebendo elementos que dizem à você que vai dar besteira?

    • Segunda opção.

    • Agora pensa que você tem acesso à todas as informações que você quer o tempo todo, que você pode se colocar na perspectiva de todos os seres e elementos o tempo todo… será que você precisa se dar o trabalho de escrever o destino de tudo para saber o que vai acontecer?

    • Hum… pensando assim… não. Se eu soubesse o que as pessoas pensam eu simplesmente saberia o que vão fazer e saberia “do futuro” é isso?

    • Sim. Afinal de contas… ele lhe deu livre arbítrio não é mesmo?

    • É verdade…

     

    Este post foi um pedido de uma das colegas e leitoras do blog. O caso acima me lembrou muito das perguntas que ela me fez como um delicioso “desafio” para um post. Para sair um pouco do padrão, vou colocar as perguntas dela aqui e respondê-las à meu modo.

     

    “Diga-me lá… até q ponto a culpa, introduzida por meio dos preceitos religiosos, pode interferir nas condições do ser humano em assumir suas decisões e escolhas?”

    Vamos fazer o caminho contrário: a culpa é uma emoção que denota dívida em geral adquirida por meio de um comportamento inadequado ou criminoso. A pessoa que é culpada possui um “pé preso”, uma dívida com alguém ou com uma sociedade porque cometeu (ou crê que o fez) um crime, um erro.

    Esta emoção pode fazer com que a pessoa pare seus projetos pessoais porque não vê que ela seja “digna” de continuar com eles. Pode afetar a sua auto imagem de uma maneira negativa fazendo com que a pessoa se identifique como uma pessoa má ou ruim por ter cometido aqueles atos. Assim sendo a pior coisa que pode ocorrer com a pessoa – no meu ponto de vista – é quando ela se identifica com o papel de “culpado”, ou seja, quando ela assume como identidade algo que é do nível do comportamento.

    A culpa “introduzida” por meio religiosos e culturais – assumo aqui a religião como um sistema de regras o qual as culturas também possuem – pode gerar esta identificação? Sim, pode. Toda religião possui um sistema de “pecados” (ou “crimes”) que podem fazer com que a pessoa assuma para si a identidade de “pecador” e, por meio disso, ela pode colocar-se à mercê de um terceiro ou de terceiros.

    Assim sendo ele decide que não é digno, responsável o suficiente, inteligente o suficiente para tomar decisões sozinho e busca sempre auxílio para validar aquilo que ele deseja e eximir-se da responsabilidade plena de pecar (ou errar) novamente. Um exemplo caricato deste tipo de identificação tem a ver com o personagem “Ned Flanders” do programa “The Simpsons” que sempre busca uma avaliação do pastor da Igreja para cada ação tomada de maneira espontânea.

    Respondendo, então, o “ponto” no qual a culpa interfere seria, para mim relativa à quanto a pessoa se identifica com o papel de pecador ou criminoso, com o quão negativa esta imagem é, com a sua percepção de expiação do pecado ou recompensa da culpa e com o quanto ele percebe esse processo como algo pessoal ou como algo que deve vir de fora.

     

    “Até que ponto este sentimento, introjetado por meio da religiosidade, pode causar dor, angústia e sofrimento?”

    A culpa, em geral é uma emoção que causa dor, angústia e sofrimento. Creio que a percepção moral que a própria pessoa possui do que fez, sua percepção de possibilidade de reparação do erro, sua maneira e presteza em executar esta reparação e o quão prejudicial sua ação foi interferem na intensidade da dor, da angústia e do sofrimento.

    Dor, é uma emoção que lembra o processo físico da dor. Na verdade sabemos que a dor emocional é sentida no mesmo local que a dor física no cérebro humano. Assim sendo a dor que se sente tem a ver com o ato e a pessoa pode sentir muita dor por ter feito algo que ela mesma considera errado.

    A angústia tem a ver com o apego que ela tem a este sistema moral. Quanto mais apegada, em geral, mais a pessoa se angustia pelo fato de que o seu ato vai contra o que ela prega para si. Este vácuo entre crença e ato gera o vazio da angústia que precisa de uma resposta evolutiva para ser dissolvida.

    O sofrimento entra em sintonia com a dor e a angústia. A ideia é que sofrer é uma atitude passiva, ele mantém-se enquanto a pessoa compreender que é totalmente indefesa em relação ao que lhe causa a dor. Muitas vezes a sensação de sofrimento permanece na pessoa, porém de uma maneira que não interfere em sua vida, pelo contrário, pode até mesmo servir de auxiliar em momentos futuros.

     

    “Até que ponto o homem deixa de ser responsável por si mesmo para evitar sentir-se culpado?”

    Até o ponto em que ele tem a competência para lidar com a culpa: quanto mais competência, menos ele precisa “não se responsabilizar”. Quanto menos competência ele possui, mais medo ele tem das consequências de seus atos, de assumir o que fez e conseguir mudar isso mais tarde e, por esta razão ele precisa fingir para si que não foi responsável pelos seus atos. Que a culpa é de outra pessoa ou entidade já que falamos de religião. Porém a própria religião coloca que o livre arbítrio é incondicional, ou seja, o homem sempre será responsável por seus próprios atos.

     

    Para fechar gostaria de deixar aqui o link para um post sobre culpa que escrevi tempos atrás que pode ajudar muito na compreensão desta emoção e na relação dela com a religião.

    Gostaria, também, de agradecer a minha colega Maria pelas perguntas e pela oportunidade de pensar sobre este tema e convidar você leitor à enviar suas dúvidas e sugestões de temas aqui para o blog das gotinhas!

    Abraço

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